Livre exame e livre interpretação

Livre exame e livre interpretação
Tradição, Confissão e a Supremacia das Escrituras
O erudito evangélico Grescham Machen (1881-1937), asseverou em 1921: “A Reforma do século 16 foi baseada na autoridade da Bíblia e ... colocou o mundo em chamas” [1]. Ele estava certo. A Reforma não somente retomou o estudo e o ensino das Escrituras, como também recuperou a antiga e esquecida forma de lê-la, abrindo o seu estudo para todos. Com isso, iniciando com uma reforma espiritual, ela gerou uma revolução em todas as áreas do saber. Vejamos alguns aspectos disso.

I. Tradição e Escrituras.

A. A redescoberta da interpretação bíblica
Na Reforma Protestante do século 16, sustentando o princípio do “livre exame” das Escrituras, deu-se uma mudança de quadro de referência. Um dos pelares fundamentais é a questão hermenêutica da tradição da igreja para a compreensão da Palavra. Há uma mudança de critério de verdade que determina toda a diferença.

Conforme acentua Popkin, Lutero inicialmente confrontou a igreja dentro da perspectiva da própria tradição da igreja, somente mais tarde é que ele: “deu um passo crítico que foi negar a regra de fé da Igreja, apresentando um critério de conhecimento religiosos totalmente diferente. Foi neste período que ele deixou de ser apenas mais um reformador atacando os abusos e a corrupção de uma burocracia decadente, para tornar-se o líder de uma revolta intelectual que viria a abalar os próprios fundamentos da civilização ocidental”[2].

Partindo desses princípios, a Reforma, onde quer que chegasse, se preocupava em colocar a Bíblia na língua do povo, a fim de que todos tivessem acesso à leitura – sendo o “reavivamento” da pregação da Palavra um dos marcos fundamentais da Reforma.

Os Reformadores criam que se as Escrituras estivessem numa língua acessível aos povos, todos os que quisessem poderiam ouvir a voz de Deus, e todos os crentes teriam acesso à presença de Deus. Contudo, os reformadores esbarraram com um problema estrutural: o analfabetismo. A socialização do saber acabou sendo também um produto da Reforma. As pessoas deveriam ser alfabetizadas para ler as Escrituras, daí a grande reforma educacional gerada pelo protestantismo.

B. “Sola Scriptura” x tradição?

A tradição nunca foi rejeitada pelo simples fato de ser tradição. Na própria Escritura encontramos ênfase a crítica à tradição (2 Ts 2.15). A questão básica é: a que tradição estamos nos referindo? Sproul explica: “Lutero e os reformadores não queriam dizer por Sola Scriptura que a Bíblia é a única autoridade da igreja. Pelo contrário, queriam dizer que a Bíblia é a única autoridade infalível dentro da Igreja” [3]. A autoridade dos Credos (Apostólicos, Nicéia, Calcedônia) era indiscutivelmente considerada pelos reformadores – tendo inclusive Lutero [O Catecismo Maior (1529) e O Catecismo Menor (1529)] e Calvino [Catecismo de Genebra (1536/37 e 1541/2) e Confissão Gaulesa (1559)] elaborado Catecismos para igreja [4].

Para nós os Credos servem para que continuemos nossa caminhada na preservação da doutrina e na aplicação das verdades bíblicas aos novos desafios de nossa geração, integrando-nos assim, à nobre sucessão daqueles que amam a Deus e à sua Palavra e que buscam entendê-la e aplicá-la, em submissão ao Espírito, à vida da igreja.

Uma tradição saudável tem compromisso com o passado na geração do futuro. Só este fato deveria, por si só, nos conduzir a uma atitude mais humilde, como assinala Noll: “ O Estudo da história da igreja deve aumentar a nossa humildade sobre quem somos e aquilo em que cremos. Não há nada que a igreja moderna desfrute que na seja uma dádiva das gerações anteriores do povo de Deus. Na realidade, nós modificamos, adaptamos e ampliamos essas dádivas do passado, mas não as criamos” [5]. Portanto, “o conservadorismo criativo utiliza-se da tradição, não como autoridade final ou absoluta, mas como recurso importante colocado à nossa disposição pela providência de Deus, a fim de nos ajudar a entender o que a Escritura está nos dizendo sobre quem é Deus, quem somos nós, o que é o mundo ao nosso redor, e o que fomos chamados para fazer aqui e agora” [6].

O Credo é uma resposta do homem à Palavra de Deus, sumariando os artigos essenciais da fé cristã. Dessa forma, eles pressupõem fé; mas não a geram. Isso é obra do Espírito Santo através da palavra (Rm 10.17). Os credos têm a sua autoridade decorrente das Escrituras.

Os credos são somente uma aproximação e uma relativa exposição da verdade revelada. Dessa forma, podem ser modificados pelo progressivo conhecimento da Bíblia a qual é infalível e inesgotável.

Não devemos tomar os Credos como autoridade final para definir um ponto doutrinário: os limites de nossa reflexão teológica estão na Bíblia, não nos Credos. Os Credos não estabelecem o limite de nossa fé, antes a norteiam.

2. O valor da Confissão de Fé de Westminster

A Confissão de Fé de Westminster (1647) [7], apresenta-nos um bom resumo dos princípios hermenêuticos que nos orientam na interpretação das Escrituras. Vejamos alguns pressupostos:

a) Que as Escrituras são inspiradas por Deus (CFW, I.2,8). Ele é o seu Autor (CFW, I.4);

b) Deus concedeu as Escrituras para serem a regra de fé e de prática (CFW, I.1-2);

c) Ela é indispensável para a vida cristã (CFW, I.1), devendo ser lida e estudada no temor de Deus (CFW, 1.8). Por isso, a igreja deve promover a sua tradução para todos os idiomas, a fim de que o homem possa conhecer a Deus, adorando-o de forma aceitável, bem como usufruir as bênçãos espirituais decorrentes da compreensão das Escrituras (CFW, I.8).

3. A Autoridade das Escrituras

A. Autoridade interna

“A autoridade da Escritura Sagrada, razão pela qual deve ser crida e obedecida, não depende do testemunho de qualquer homem ou igreja, mas depende somente de Deus (a mesma verdade) que é o seu autor; tem, portanto, de ser recebida, porque é a palavra de Deus. II Tim. 3:16; I João 5:9, I Tess. 2:13.” (CFW I.4)

A autoridade da Bíblia deriva do fato dela ser a Palavra de Deus. O seu testemunho é interno e evidente, mesmo que os homens assim não creiam. Ela não depende do nosso testemunho para ter autoridade; ela é o que é (1Ts 2.13; 2 Tm 3.16; 2 Pe 1.20,21; 1 Jo 5.9).

Não é a igreja que autentica a Palavra por sua interpretação, como a igreja romana sustentou em diversas ocasiões. É a Bíblia que se autentica a si mesma como Palavra de Deus possuidora de autoridade e é ele mesmo quem nos ilumina para que a interpretemos corretamente (Sl 119.18). Por isso, o Espírito não pode ser separado da Palavra. Somente pela operação divina poderemos reconhecer a sua origem divina bem como compreendê-la salvadoramente. (CFW, I.5,6).

Cabe nós submeter o nosso juízo e entendimento à verdade de Deus conforme testemunhada pelo Espírito. A Palavra de Deus direcionada ao homem revela a seriedade com que Deus nos trata: “Sempre que o Senhor se nos acerca com sua Palavra, Ele está tratando conosco da forma mais séria, com o fim de mover todos os nossos sentidos mais profundos. Portanto, não há parte de nossa alma que não receba sua influência”. [8].

B. Autoridade hermenêutica

A Bíblia apresenta a melhor interpretação a respeito dos seus ensinamentos: “A regra infalível de interpretação da Escritura é a mesma Escritura; portanto, quando houver questão sobre o verdadeiro e pleno sentido de qualquer texto da Escritura (sentido que não é múltiplo, mas único), esse texto pode ser estudado e compreendido por outros textos que falem mais claramente. At. 15: 15; João 5:46; II Ped. 1:20-21.” (CFW, 1.9).

Nós não podemos criar uma suposta categoria científica a qual se torne a verinha de condão para a interpretação da Bíblia. Os princípios hermenêuticos devem estar subordinados a esta verdade e, devem ser derivados, portanto, da própria Bíblia: a harmonia do seu todo e das suas partes estabelecem uma unidade harmoniosa, por meio da qual, formulamos os princípios de interpretação, tendo como mestres, os profetas – que interpretaram os acontecimentos passados e a história dos seus dias -, Jesus Cristo e os apóstolos, os quais deram lições práticas de hermenêutica, interpretando o Antigo e o Novo Testamentos: “Os crentes possuem um padrão permanente e um modelo no uso que nosso Senhor fez do Antigo Testamento, e uma parte do atual trabalho do Espírito Santo no tocante aos crentes é abrir-lhes as Escrituras, conforme o Cristo ressurreto as abriu para os dois discípulos no caminho para Emaús (Lc 24.25ss)” [9].

Quando nos aproximamos da Bíblia partimos do pressuposto de que ele é o registro fiel e inerrante da Revelação de Deus (Jo 10.35; 1Tm 1.15; 3.1; 4.9; 2Tm 3.16; 2Pe 1.20,21); por isso, podemos dizer como Paulo: “Fiel é a Palavra” (1 Tm 3.1; 4.9).

É por meio das Escrituras que aprendemos que o melhor intérprete da Palavra é o Espírito falando na Escritura (CFW, 1.10; veja Mt 22.29,31; At 4.24-26; 28.25; 1 Co 2.10-16); como nos instruiu o Senhor Jesus Cristo: “Quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará as cousas que há de vir” (Jo 16.13). “Mas o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as cousas e vos farpa lembrar de tudo o que vos tenho dito” (Jo 14.26; Jo 5.30; 14.6; 17.17).

C. Autoridade auxiliadora

“Sob o nome de Escritura Sagrada, ou Palavra de Deus escrita, incluem-se agora todos os livros do Velho e do Novo Testamento, que são os seguintes, todos dados por inspiração de Deus para serem a regra de fé e de prática...” (CFW, I.2).

Como bem sabemos, a Escritura é infalível, não a nossa interpretação, portanto, devemos buscar sempre nas Escrituras o sentido pleno da revelação. A Teologia é uma reflexão interpretativa e sistematizada da Palavra de Deus. Não existe teologia inspirada por Deus. A relevância de nossa formulação não dependerá de sua “beleza”, “popularidade” ou “significado para o homem moderno”, mas sim na sua conformação às Escrituras.

O mérito de toda teologia está nos seu apego incondicional e irrestrito à Revelação. A melhor interpretação é a que expressa o sentido do texto à luz de toda a Escritura, ou seja, em conexão com toda a verdade revelada. Não há nada mais edificante e prático do que a verdade de Deus.
A Teologia Reformada é uma reflexão baseada na Palavra em submissão ao Espírito, buscando sempre uma compreensão exata do que Deus revelou e inspirou e que, agora, nos ilumina pelo mesmo Espírito (Ef 1.15-21; Sl 119.18).

A Teologia Reformada reconhece a centralidade real de Deus em todas as coisas, tendo como alvo principal, não tão decantado bem-estar humano – que por certo tem a sua relevância-, mas a glória de Deus, sabendo que as demais coisas serão acrescentadas (Mt 6.33; Ef 1.11,12).

É a Palavra de Deus que deve dirigir toda a nossa abordagem e interpretação teologia, bem como de toda a nossa compreensão da realidade.

D. Autoridade para nos conduzir a Deus

“Ainda que a luz da natureza e as obras da criação e da providência de tal modo manifestem a bondade, a sabedoria e o poder de Deus, que os homens ficam inescusáveis, contudo não são suficientes para dar aquele conhecimento de Deus e da sua vontade necessário para a salvação; por isso foi o Senhor servido, em diversos tempos e diferentes modos, revelar-se e declarar à sua Igreja aquela sua vontade; ... foi igualmente servido fazê-la escrever toda.” (CFW I.1).

“A própria luz da natureza no espírito do homem e as obras de Deus claramente manifestam que existe um Deus; porém só a sua Palavra e o seu Espírito o revelam de um modo suficiente e eficazmente aos homens para a sua salvação” (Catecismo Maior de Westminster, resposta à pergunta 2).

Entendemos que sem as Escrituras não podemos ter um conhecimento correto e salvador de Jesus Cristo (Jo 5.39; Rm 10.17), como bem observou Calvino (1509-1564): “Ora, já que, em razão de sua obtusidade, de modo nenhum pode a mente humana chegar até Deus, salvo se assistida e sustentada por sua Sagrada Palavra” [10].

Todavia, também, sabemos que este conhecimento não deve ter um fim em si mesmo; a revelação foi-nos dada para nos conduzir a Deus (Jo 5.39,40), adorando-o na liberdade do Espírito e nos parâmetros da Palavra. Sem as Escrituras, Cristo não pode ser conhecido salvadoramente. O Conhecimento de Cristo deve implicar sempre na sua adoração.

E. Autoridade para julgar a nossa teologia

“O Velho Testamento em Hebraico... e o Novo Testamento em Grego... sendo inspirados imediatamente por Deus e pelo seu singular cuidado e providência conservados puros em todos os séculos, são por isso autênticos e assim em todas as controvérsias religiosas a Igreja deve apelar para eles como para um supremo tribunal..." (CFW, I.8)

“...o Juiz Supremo em cuja sentença nos devemos firmar não pode ser outro senão o Espírito Santo falando na Escritura” (CFW, I.10)

O valor da teologia estará sempre subordinado à sua fidelidade bíblica. Por isso é que a teologia ou é bíblica ou não é teologia. Não julgamos a Bíblia; ela que julga. O Espírito falando por meio da palavra, é fogo depurador da genuína teologia.

F. Autoridade completa

“Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. (CFW, I.6)”

A Escritura é a revelação completa de Deus; tudo o que Deus quer que saibamos a respeito da nossa salvação está registrado de forma explícita (CFW I,1.7) A demais verdades reveladas, que precisam ser obedecidas, criadas e observadas para a salvação podem ser compreendidas por meio de uma interpretação lógica, amparada no conjunto de ensinamentos bíblicos. (CFW, I.6).

G. Autoridade escrita final

“...À Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens...” (CFW, I.6)

Entendemos que os 66 livros canônicos encontra-se a revelação escrita de Deus, registra de forma inerrante. À Bíblia, não se fará nenhum acréscimo, correção ou eliminação (Dt 4.2; 12.32; Mt 5.18; Ap 22.18,19). Ela é a palavra final de Deus, no que se refere à sua vontade para nós. A Revelação é completa – atingindo tudo o que Deus deseja -, e final: permanece para sempre.

O que afirmamos, exclui o obviamente, a aceitação dos apócrifos (CFW, I.3), as supostas revelações complementares, as interpretações “oficiais” (CFW, I.4) e a tradição verbal ou escrita (como no caso da igreja romana).

Daqui concluímos que o nosso sistema doutrinário deve permanecer sempre aberto a um reestudo das Escrituras. O nosso sistema doutrinário, por melhor que seja - e eu estou convencido de que é -, não pode ser mais rico do que a Palavra de Deus. Por isso, o critério último de análise, será sempre O Espírito Santo falando nas Escrituras (CFW, I.10).

Conclusão

Como vimos, a Escritura é a melhor intérprete de si mesma. Como “norma da fé” a Escritura é o crivo pelo qual toda doutrina ou mesmo profecia deve ser analisada. DA própria Escritura procedem os princípios de interpretação e os termos empregados.
Isso nos ensina que todo crente tem livre acesso aos ensinos da Palavra. Todos devem se empenhar em compreendê-la com a máxima perfeição possível. Por meio desse livre exame, todo crente se desenvolve e é edificado nos estudo pessoal e particular das Escrituras.

Nota

[1] J. Gresham Machen, Cristianismo e Liberalismo, São Paulo: Os puritanos, 2001, p. 83.

[2] Richard H. Popkin, Histótia do Ceticismo de Erasmo a Spinoza, Rio Janeiro: Francisco Alves, 200, p. 26.

[3] R. C. Sproul, “Sola Scriptura: Crucial ao Evangelismo”: In: J.M. Boice, org. O alicerce da Autoridade Bíblica, São Paulo: Vida Nova, 1982, p. 122.

[4] Para um estudo mais detalhado deste ponto, ver: Hermisten M. P. Costa, “Os símbolos de Fé na História: Sua Relevância e Limitações” In: Fides Reformata: Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, IX/1 (2004) 51-57.

[5] Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, São Paulo: Cultura Cristã, p. 20.

[6] J. I. Packer, “O Conforto do Conservadorismo” in: Michael Horton, org. Religião de poder, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 241.

[7] Doravante citada como CFW.

[8] João Calvino, Exposição de hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 4.12), p. 108.

[9] F.F. Bruce, “Interpretação Bíblia”: In: J.D. Douglas, org. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, Vol II, p. 753.

[10] João Calvino, As Institutas, I.6.4.

Autor: Herminsten Maia Pereira da Costa
Fonte: Revista Expressão, Século 21 – Atualidades, A igreja em seu contexto, Lição 07, pg. 28-35, Ed. Cep.

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